A ESTRUTURA NARRATIVA DO ACONSELHAMENTO NEUROPSICOLÓGICO

Autor:

Vitor Geraldi Haase

Em 2001, tive uma oportunidade formativa muito interessante. Consegui uma bolsa de estudos e passei um mês visitando um hospital especializado em esclerose múltipla em Milano Due. Milano Due é uma cidade que foi construída pelo Berlusconi e lá se situava, em uma universidade católica, um dos principais centros de pesquisa sobre esclerose múltipla da Itália e do mundo.

Tive oportunidade de conhecer a estrutura que eles construíram e utilizavam para fazer o randomized controlled trials. Havia um hospital dia para o qual os pacientes acorriam de todos os cantos da Itália. Também tive oportunidade de ver como era feito o exame neuropsicológico.

Acompanhei as neuropsicólogas enquanto elas faziam a famigerada “avaliação” neuropsicológica. Era, literalmente, uma avaliação, como essas cujos relatórios os pacientes trazem à consulta. Por vezes, trazem mais de uma avaliação. Sem que os resultados dessas avaliações tenham sido incorporados à história de vida e ao processo decisório do cuidado dos pacientes.

Fiquei muito surpreso com o que vi lá no Ospedale San Raffale. As neuropsicólogas faziam avaliações em massa.  Cada uma trabalhava com seis a oito pacientes por dia. A maioria dos pacientes era indivíduos com suspeita de demência ou esclerose múltipla. Com cada paciente elas trabalhavam uma hora. Uma hora inteirinha e muito bem trabalhavam.

Davam olá pro paciente, liam o encaminhamento do neurologista e davam uma surra de testes nos pacientes. O protocolo incluía um teste de inteligência, o Raven, e outros testes cobrindo praticamente todos os domínios usuais de um exame neuropsicológico de adulto. Todos os testes eram aplicados em uma hora. Não faziam uma história clínica propriamente dita e não eram muito adeptas do teste de hipóteses. Raramente as vi mudando o protocolo em função de observações que fizessem online durante a testagem. Simplesmente, aplicaram os testes, corrigiam, comparam os escores com algum referencial normativo, listavam tudo e mandavam para o médico. Todo o trabalho interpretativo  era feito pelo médico.


O modelo que eu conheci lá em Milano Due funcionava e cobria as necessidades diagnósticas de um número muito grande de pacientes. Mas não era nisso que eu tinha pensado quando eu me meti na neuropsicologia. E não foi isso que eu vi nos serviços que tive oportunidade de conhecer na Alemanha. 

Depois de me aposentar na UFMG, tenho a oportunidade de ler muitos relatórios feitos por neuropsicólogos e neuropsicólogos brasileiros. A impressão com a qual fico é que esse modelo de “avaliação” colou aqui no Brasil. Raramente, tenho a oportunidade de ler uma história clínica. Raramente, tenho a oportunidade de ler um esforço para integrar os resultados psicométricos a um argumento diagnóstico e à biografia, de forma que os resultados façam sentido e possam orientar as expectativas do cliente.


Na maioria das vezes, as avaliações se reduzem a listas de escores, com os respectivos posicionamentos do desempenho na curva normal. Quando alguma interpretação é relatada, geralmente consiste de uma interpretação padrão dos escores do teste, retirada do manual. P. ex., por vezes, a inteligência é descrita como “abaixo da média”. Isso é uma tragédia. O pai ou professora que lê isso pensa que o menino é deficiente intelectual. Os leigos confundem média com ponto de corte. Não entendem que metade da população tem inteligência abaixo da média e que média, no caso, não é o ponto de corte para deficiência intelectual. Isso é uma causa infelicidade para muitas famílias e de sucesso clinico para mim, quando lhes explico que o menino não é “retardado”.


Está se consolidando uma estrutura padrão de relatório de avaliação neuropsicológica; a) Uma lista de sintomas; b) Uma lista de escores nos mais diversos testes com seu respectivo referencial normativo; e c) Um diagnóstico cuja gênese é pra lá de obscura. P. ex., se uma pessoa adulta responde um questionário de TDAH e não apresenta escores elevados em impulsividade/hiperatividade mas apresenta escores elevados em “desatenção”, ela é rotulada como tendo um “TDAH forma predominantemente desatenta”. Sem que haja uma preocupação de entender como os sintomas se originaram, qual é o drama do paciente, qual é o significado que ele atribui aos sintomas, se ele tem sequer algum sintoma relacionado, sem considerar que além do TDAH pode haver outras causas de “desatenção”, o até mesmo sem considerar o que atenção e desatenção significam, como esses construtos são operacionalizados.


O desprezo pela operacionalização dos construtos e reificação dos testes é outra tendência. A partir do fato de que uma pessoa apresenta alteração em um teste de atenção, é concluído que ela tem alguma forma de “desatenção” e, portanto, apresenta um determinado transtorno. Sem que, necessariamente, a pessoa apresente sintomas relacionados, sem que seja considerado o fato de que um grande número de pessoas ansiosas apresenta desatenção.


A retificação ou fetichismo dos testes é sustentada pelos próprios criadores dos instrumentos, os quais, não obstante, são chancelados pelas autoridades de saúde. P. ex., uma vez eu precisava avaliar a vigilância ou atenção sustentada de uma criança. Uma psicóloga aplicou um teste muito em voga no Brasil. Quando fui inquirir sobre a operacionalização do teste, fiquei sabendo que o mesmo se compunha de sessenta ensaios! Qualquer um que tenha lido qualquer coisa sobre vigilância sabe que os testes computadorizados precisam durar dezenas de minutos: no mínimo dez ou quinze minutos para uma criança, muito mais para um adulto.


Outro dia, vi uma propaganda de um teste de atenção no FaceBook. Fui olhar do que se tratava. No site da editora só eram descritas banalidades e ficava bem claro que o uso do instrumento era restrito a psicólogos. Fora do meu alcance. Mesmo assim, insisti em saber mais alguma coisa. Vai que um dia eu recebo um relatório com o resultado nesse teste! Fui no Google Scholar e baixei os papers dos autores, os quais, supostamente, fundamentam a validade do instrumento. Eu me dei ao trabalho. Todos os papers apresentavam tudo quanto é tipo de indicador psicométrico sofisticado. Mas em nenhum paper vi descrito como o instrumento operacionalizava os construtos que supostamente deveria medir.


Psicometria não é só uma questão de análises estatísticas. As medidas psicológicas são indiretas. Elas dependem de uma rede nomológica. Ou seja, de uma rede de inferências que são feitas sobre a estrutura funcional de um determinado construto. Essa rede é construída paulatinamente a partir de uma série de estudos experimentais. A partir dos resultados dos estudos experimentais são construídos modelos sobre as relações entre os diversos componentes. A seguir, os diversos componentes são “operacionalizados”. Ou seja, os pesquisadores procuram desenvolver observações comportamentais, os famosos itens ou testes, cujas relações entre si devem refletir de forma homóloga as relações entre os construtos. 


Quando um neuropsicólogo está “testando” atenção, ele não está medindo um processo psicológico como alguém que mede  a altura ou o comprimento. O neuropsicólogo está testando a hipótese quanto à homologia entre o comportamento do cliente e algum  modelo cognitivo. Ou seja, o resultado precisa ser interpretado em termos do modelo. Se o neuropsicólogo não conhece ou não leva em consideração o modelo, ele não está medindo nada. A interpretação cognitiva é essencial, mas não basta. O perfil cognitivo precisa ser interpretado à luz da fenomenologia dos sintomas. Sem fenomenologia não tem clínica.


Fenomenologia significa história clínica e história clínica significa narrativa. Não tem como fazer um aconselhamento neuropsicológico sem integrar os resultados dos testes e outras observações à biografia do cliente. Sem aconselhamento, realmente, a neuropsicologia se reduz a uma avaliação. Como aquela de alguém que consulta um aplicativo para saber o preço do seu imóvel. 


Uma distinção oriunda da pedagogia pode ser útil agora. Na pedagogia baseada em evidências, os pesquisadores distinguem dois tipos de avaliação: a cumulativa e a formativa. A avaliação cumulativa consiste averiguar o quanto o aluno já aprendeu, situando seu desempenho na curva normal. A avaliação formativa consiste em identificar onde o aluno se situa em uma trajetória de desenvolvimento. A avaliação formativa permite identificar as próximas etapas do processo de aprendizagem.


O aconselhamento neuropsicológico é uma espécie de avaliação formativa na medida em que ajuda o cliente e a família a construir um prognóstico, atribuindo significado ao perfil neuropsicológico e identificando os caminhos que podem ser triados para promover o florescimento do indivíduo.


É fácil compreender a relevância da estrutura narrativa para o aconselhamento neuropsicológico. As narrativas constituem o modo default através do qual os humanos atribuem significado à sua experiência. Metade do nosso tempo acordado é gasto em devaneios, os quais frequentemente são estruturados como narrativas. Ou seja, histórias que contamos para nós mesmos e que preparamos para contar aos outros.  Metade das nossas conversações constituem-se de histórias que contamos uns para os outros. 


O nosso self é inicialmente corporal. A nossa sensação de agência resultando das consequências das nossas ações sobre o ambiente. Um aspecto importante das ações diz respeito à interação social. A interação social é implementada fisicamente. Mas também é implementada verbalmente, ou seja narrativamente como histórias dos episódios de interação social. As interações narrativas com os outros e consigo próprio, através de reminiscências individuais, interpessoais e culturais sob as mais diversas formas de literatura permite a construção de um self narrativo. O self narrativo é uma história de vida construída a partir do raciocínio autobiográfico.


Se uma pessoa apresenta algum problema neuropsicológico, é importante que o problema seja integrado à biografia da pessoa da maneira mais adaptativa possível. De modo que a coisa toda faça sentido, sentido, seja pessoal e socialmente aceitável e permita à pessoa tocar sua vida adiante.


Toda narrativa verbal tem uma estrutura, uma gramática ou arco narrativo. Uma história sempre ocorre em uma situação concreta com personagens caracterizados pelas suas personalidades, emoções, intenções etc. Algo ocorre. O evento que se sucede desencadeia emoções nos personagens, os quais reagem. As emoções e reações desencadeiam um arco de aumento da tensão emocional, atingindo um clímax e se resolvendo, quer seja de forma positiva ou negativa. A resolução emocional após o clímax é sempre reforçadora, quer seja de forma positiva (acesso a estímulos apetitivos) ou negativa (esquiva de estímulos aversivos). 


As narrativas ajudam a organizar a experiência, atribuindo-lhe significado. As narrativas ajudam a criar expectativas, a fazer previsões, dentro de limites: “Não existe bolinha de cristal, mas considerando a sua história e a história de pessoas em situações e com problemas semelhantes aos seus é possível descortinar um panorama de tais e tais possibilidades. Se for por esse lado, pode ser assim. Se for por outro lado, pode ser assado.” 


Experimentar sintomas é angustiante, mobiliza emoções. Uma biografia neuropsicológica ajuda a pessoa a atribuir significado a sua experiência e a desenvolver expectativas realistas. As narrativas organizam a experiência emocional e a resolução do arco narrativo é emocionalmente reforçadora, exercendo efeitos terapêuticos. Não existe avaliação sem intervenção. 


Afinal, estamos sempre mexendo com a vida das pessoas. Precisamos considerar os efeitos das coisas que dissermos ou deixarmos de dizer. Isso é teoria da mente de segunda ordem. Funciona dentro de limites, mas funciona. Tanto que nem a humanidade nem a neuropsicologia se extinguiram. Sem fenomenologia, narrativa e teoria da mente de segunda ordem a neuropsicologia não vai adiante.


Se você teve paciência de ler esse textão até o final, o Programa de Mentoria de Excelência em Neuropsicologia pode ser bem interessante: https://institutoletraenumero.squarespace.com/press/success-story-shirley-lk2ek-3xmwx-ebjnl-drna9 

Você pode obter mais informações pelo WhatsApp (31) 7105-0316.

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