DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE ZERO NA BIBLIOTECA MÁGICA

Embora o sistema numérico seja amplamente ensinado desde os primeiros anos escolares, o conceito de zero apresenta desafios únicos para as crianças pequenas. Ao contrário dos números naturais iniciais — que podem ser facilmente associados a conjuntos visíveis de objetos —, o zero representa a ausência total de elementos. Essa ideia exige um salto conceitual que não se constrói apenas com a prática da contagem, mas envolve uma elaboração mais abstrata e linguística.

Segundo Susan Carey (2009), o desenvolvimento do conceito de número ocorre de forma incremental. Inicialmente, as crianças são capazes de associar palavras como “um”, “dois” e “três” a quantidades específicas, mas sem compreender plenamente o sistema numérico como um todo. Nessa fase, são chamadas de subset-knowers. A transição para o entendimento completo ocorre quando a criança se torna uma CP-knower (Cardinal Principle knower) — ou seja, quando ela compreende que o último número contado representa a quantidade total de elementos em um conjunto. Essa conquista marca a internalização do princípio da cardinalidade.

Esse processo de reorganização conceitual, que Carey chama de bootstrapping, permite que a criança construa a noção de número como uma entidade composta, que representa magnitudes — não apenas etiquetas de contagem.

No estudo apresentado por Elisa Braz Cota no podcast da Biblioteca Mágica (Instituto Letra & Número, 21 de julho de 2025), foram discutidos os achados de Hartmann, Herzog e Fritz (2022) sobre a compreensão do zero por crianças em idade pré-escolar. Mesmo entre aquelas que já dominavam o princípio cardinal, muitas ainda apresentavam dificuldade em conceituar o zero. A pesquisa revelou que o zero não segue a mesma trajetória de aquisição dos outros números naturais. Ele se mostrou conceitualmente mais difícil, com menor poder discriminativo entre os níveis de habilidade numérica.

Os dados sugerem que o entendimento do zero ocorre apenas após o desenvolvimento consolidado da cardinalidade — especialmente quando a criança já é capaz de discriminar conjuntos com mais de quatro elementos. Isso destaca o papel da linguagem e da mediação pedagógica na construção desse conceito. Como apontado na discussão da Biblioteca Mágica, o desenvolvimento numérico exige da criança um esforço considerável de memória de trabalho, especialmente na fase pré-escolar, quando ela começa a compreender que a sequência verbal dos numerais corresponde a quantidades ordenadas.

Um dos achados mais interessantes do estudo é que a compreensão ordinal do zero — como sendo o número que vem antes do um — pode servir como ponto de entrada para sua conceitualização. Estratégias como comparações explícitas (“qual é menor, 0 ou 1?”), uso de termos como “nenhum” ou “vazio” e atividades com conjuntos ausentes podem favorecer essa aprendizagem.

Além disso, o estudo reforça que, embora muitas crianças desenvolvam espontaneamente o raciocínio numérico-aritmético, uma parcela significativa depende de ensino explícito para compreender conceitos como o zero. Assim, é papel do educador favorecer essa aprendizagem, equilibrando o respeito ao ritmo do desenvolvimento com a oferta de experiências significativas e linguagens adequadas.

Em síntese, ensinar o zero é mais do que ensinar a contar até ele. É propor à criança uma forma de representar cognitivamente o nada como parte legítima e ordenada do sistema numérico. Para isso, é essencial integrar linguagem, comparação, contexto e intencionalidade pedagógica.

Sessão Biblioteca Mágica: https://www.youtube.com/live/7l3RPsNJuH0?si=zgRVOPagGlRf0zhF

REFERÊNCIAS:

  • Carey, S. (2009). The Origin of Concepts. Oxford University Press.

  • Hartmann, J., Herzog, M., & Fritz, A. (2022). Zero – an Uncommon Number: Preschoolers' Conceptual Understanding of Zero. International Electronic Journal of Elementary Education, 14(3), 353–361. https://doi.org/10.26822/iejee.2022.249

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